terça-feira, 21 de julho de 2009

O Padre Renato

A correspondência trocada entre Armando Silva Carvalho e Maria Velho da Costa foi agora publicada em livro pela editora Caminho. “O Livro do Meio” foi galardoado pela Associação Portuguesa de Escritores /CTT, com o Grande Prémio de Poesia. O autor faz inúmeras alusões às Caldas da Rainha e pessoas que povoaram a sua infância. Aproveitando a "boleia" do Cavacos das Caldas, sempre com grande disponibilidade para colaborar no nosso Blog e que nos disponibilizou o livro, transcrevo um texto onde o autor recorda o Padre Renato, professor da nossa Escola. …Mas estava eu a falar do meu padre Renato. Ele tinha medo de tudo o fizesse barulho. Uma tarde, em plena festa de Agosto, hora da procissão, hora solene, o padre Renato dera o fora e ninguém sabia para onde. Os foguetes rebentavam no ar, as crianças sujavam as fatiotas novas, os festeiros suavam encasacados, os anjinhos mijavam no cetim barato das suas vestes celestes (não, não vou fazer literatura regional), só faltava o padre. Fui eu e o meu pai, com a denúncia privada da Carlota, quem soube onde ele se escondia, enrolado no medo da tonitruante algazarra a vibrar num céu de pouca fé. Conseguimos trazê-lo, muito a custo. Suado, calado e quase a desmaiar, o homem percorreu, protegido sob o tecto do pálio, as três ou quatro ruas principais da povoação, com a cruz fantasiosa nas mãos trémulas e mais dois padres acólitos a agarrar-lhe os paramentos de luxo. Mas sou eu que me lembro, porque fui só eu quem o viu transfigurado, tirando das teclas do piano, que não queria colaborar, os sons, numa explosão de amor sem freio, sabedor da sua natureza única, vibrante de vida cósmica, num orgasmo em delírio, para além do tempo. Durante a semana, o padre não largava a batina e poupava nas vestes. Nenhum colega seu andava, como andam agora, de gravata, blusão ou traje de desporto. Deslocava-se numa velha moto que só lhe dava desgostos e custava a pegar nas manhãs frias… ….O padre Renato, que Deus tem certamente encostado à porta das oratórias mais arrebatadas, ensinava-me solfejo, pintura a óleo em tela natural e alguns conselhos práticos para evitar o pecado. Dou-lhe hoje a grandeza que eu não sabia dar-lhe quando tinha só sete anos…. Comentário: Se eu tivesse de falar do «meu padre Renato», seria obrigado a regressar à escola velha, ao ciclo preparatório e às aulas de canto coral. A viagem levar-me-ia até 63 ou 64 e quedar-se-ia por aí. Mais do que o solfejo que nos terá tentado ensinar, ou das cantigas que nos terá posto a cantar, recordo-o de apito na boca à procura do tom adequado à execução da partitura. É que, como nos dizia, não tinha ouvido e só conseguia trautear uma melodia com a presença de uma pauta. Os risos eram constantes. As reprimendas de nulo efeito. Depois de falhadas as tentativas de nos pôr a cantar, ou nos intervalos, deliciava-nos com histórias incríveis da sua própria lavra ou obtidas em fontes singulares que a memória não registou. O sucesso estava sempre garantido. Não se ouvia uma mosca durante a função. Os pedidos de novos relatos eram constantes. A anuência era imediata, com a condição de se cantar mais uma cantiguinha. «Minhas botas velhas, cardadas, / palmilhando léguas sem fim, / quanto mais velhinhas e estragadas, / quanto mais vigor sinto eu em mim!...» (de repente, veio-me esta à memória). «As aventuras do Tonecas» (parece-me ser este o nome do herói) tinham sempre mais sucesso. Recordo a batina e a motoreta do padre Renato. Descobri neste espaço os quadros e o livro que nos deixou. Desconhecia a faceta revelada pelo Armando Silva Carvalho n’ «O Livro do Meio». Fiquei com curiosidade de ler essa correspondência. Sobretudo por contar com a participação da Maria Velho da Costa, uma escritora que há muitos anos leio e releio com muito proveito e prazer. Artur R.Gonçalves............22-07-2009

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