segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Memórias do J.L.Reboleira Alexandre

Revisitar o passado, o Bouro
Num dos dias mais quentes da passada semana, a querer fazer mentir todas as previsões dos meteorologistas, que previam para 2012, um Verão fresco e húmido, aquele que será afinal, um dos melhores Verões do Québec dos últimos anos, vínhamos calmamente para o trabalho, conduzindo a viatura familiar e ouvindo uma das estações de rádio de língua inglesa da nossa preferência. Para quem apenas conhece a confusão e a agressividade das estradas europeias em geral, ou pior ainda, das portuguesas em particular, é quase impossível entender quanto pode ser relaxante e agradável a condução matinal num dia quente de Julho, numa cidade como Montreal.
De repente, os nossos sentidos são interpelados pelo inconfundível tom de voz de um dos mais importantes cantores e compositores dos anos sessenta do século XX, e dos anos actuais afinal, com os quais crescemos e nos formámos. Estávamos perante a voz e a música de Neil Diamond, que através do tema bilingue, em castelhano e inglês, intitulado Canta Libre, nos transportava para estados de espírito de outras épocas.

Canta libre, canta vida, de mi madre y mi padre,
Canta mi corazón, para los niños y sus niños,
Canta libre.

I got music runnin' in my head,
Makes me feel like a young bird flyin',
Cross my mind and layin' on my bed,
Keeps me away from the thought of dyin'

Sob o efeito anestésico dos sons e das palavras deste hino à liberdade e à vida, e sem a mínima razão aparente, encontramo-nos a rever a imagem da velha estação de caminho de ferro do Bouro. Relemos mentalmente a reportagem que a Gazeta nos ofereceu há alguns dias sobre a sua congénere de São Martinho do Porto, salpicada pela sensibilidade que o C. Cipriano nos consegue transmitir, cada vez que escreve sobre transporte ferroviário. Voltávamos a ter de novo uma quinzena de anos e percorríamos despreocupadamente os interiores e os cuidados jardins da estação da aldeia da nossa infância. O chefe Rodrigues contava que antes de se instalar definitivamente e durante mais de trinta anos na bela vila da baía, tinha sido obrigado (não garantimos que o tivesse dito assim, mas foi isso que lemos e entendemos) a passar alguns anos na pequena e isolada estação, que servira durante várias gerações a população do Chão da Parada e as necessidades, em termos de transporte de pessoal e mercadorias da vizinha quinta do Talvay que se dedicava na altura à cultura intensiva do arroz de regadio, e recebia imensos trabalhadores sazonais, oriundos maioritariamente das pobres aldeias das planícies alentejanas. Eram os chamados, bimbos, e muitos acabavam por casar e constituir família na nossa aldeia.

Instalada em local ermo e isolado, entre pinhais e ricos terrenos agrícolas, a estação do Bouro, com o seu imponente e amplo armazém construído em madeira, para alguém que não tivesse ligações afectivas à zona, seria definitivamente o pior local do Mundo, que um jovem casal poderia escolher para iniciar a sua vida. No entanto, para todos os que nasceram naquelas paragens e diariamente se dirigiam para as fazendas dos Arneiros Pequenos, das Pôças, dos Brejos ou do Rechiéu, para as suas pequenas e dispersas parcelas de terreno que lhes davam batatas, feijões, milho, e todo o tipo de legumes frescos que respondiam às necessidades duma família normal da época, numa altura em que a palavra frigorífico não tinha para os habitantes da nossa aldeia qualquer significado, seria o oposto, pelo imaginário que oferecia, como cais de partida para mundos melhores, e pela qualidade de todos os terrenos envolventes.

No pequeno bairro da estação habitava um miúdo um pouco mais velho do que nós, que nos introduzia entre aquelas velhas paredes frente às linhas do comboio, e nos organizava tardes inteiras a jogar ao liques ou ao sete e meio, com todos os empregados dos Caminhos de Ferro que ali viviam de forma temporária. O pai daquele miúdo já na altura andava pelas Américas e quando vinha visitar a família contava-nos histórias maravilhosas destes amplos espaços. Obviamente, o filho, cedo partiu também, para o Novo Mundo, e cremos ter sido o único nativo do Chão da Parada, que lutou contra os comunistas na guerra do Vietnam. Nunca mais o vimos, nem atravessámos os seus terrenos, por um atalho, que nos permitia na altura chegar mais rapidamente ao Brejo, e aí cumprirmos, durante as longas férias de Verão, o que a nossa mãe nos impusera, para, após árduas negociações, obtermos a necessária autorização para partirmos a pé, de bicicleta, ou numa fase posterior, de motorizada, para a nossa praia favorita, a praia de Salir. Nesta praia começavam entretanto a aparecer umas miúdas que, ao contrário das da terra, já usavam uns fatos de banho «escandalosos», mas para nós muito elegantes, de duas peças separadas, bem pequeninas, e que, ou falavam francês ou então, um português algo distorcido, pois apenas por ali as víamos durante o mês de Agosto. No fim desse mês, inícios de Setembro, voltavam de novo para a terra distante, onde os seus pais ganhavam a vida e elas prosseguiam os estudos.

Hoje, sempre que voltamos ao Chão da Parada, a nossa companheira, uma dessas tais garotas que por ali apareciam todos os meses de Agosto, e que adorava subir e descer a grande duna de Salir um dia fixou uma das motas que era conduzida por um rapaz da aldeia que ela não conhecia, sabe que a pequena visita ao local onde estava a estação do Bouro, faz parte do nosso roteiro turístico obrigatório. Quando olhamos para a velha quintinha do miúdo que partiu para a América, para o pequeno casal que servia de residência secundária ao senhor Cruz, que cremos, vivia em Lisboa, ou para o local onde em tempos se transformaram produtos resinosos, e posteriormente funcionou um pequeno restaurante, e que continua guardado por um cão de aspecto nada acolhedor, não somos imunes a uma enorme, mas simultaneamente muito agradável melancolia, acompanhada por uma sensação de bem-estar que apenas os locais dos quais guardamos boas recordações nos podem dar. A estação do Bouro, é, para nós, um desses locais.

 Quanto á localização da nossa velha estação, não pode ficar situada na Serra do Bouro, pois esta não existe como aglomerado populacional. Dá apenas o nome à freguesia. Dizia-se então na altura, que se não ficava no Chão da Parada, ficaria localizada no...Bouro.

J.L. Reboleira Alexandre

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