Revisitar o passado, o Bouro
Num dos
dias mais quentes da passada semana, a querer fazer mentir todas as previsões
dos meteorologistas, que previam para 2012, um Verão fresco e húmido, aquele
que será afinal, um dos melhores Verões do Québec dos últimos anos, vínhamos
calmamente para o trabalho, conduzindo a viatura familiar e ouvindo uma das
estações de rádio de língua inglesa da nossa preferência. Para quem apenas
conhece a confusão e a agressividade das estradas europeias em geral, ou pior
ainda, das portuguesas em particular, é quase impossível entender quanto pode
ser relaxante e agradável a condução matinal num dia quente de Julho, numa
cidade como Montreal.
De
repente, os nossos sentidos são interpelados pelo inconfundível tom de voz de
um dos mais importantes cantores e compositores dos anos sessenta do século XX,
e dos anos actuais afinal, com os quais crescemos e nos formámos. Estávamos
perante a voz e a música de Neil Diamond, que através do tema bilingue, em castelhano
e inglês, intitulado Canta Libre, nos
transportava para estados de espírito de outras épocas.
Canta libre, canta vida, de mi madre y
mi padre,
Canta mi corazón, para los niños y sus niños,
Canta libre.
Canta mi corazón, para los niños y sus niños,
Canta libre.
I got music runnin' in my head,
Makes me feel like a young bird flyin',
Cross my mind and layin' on my bed,
Keeps me away from the thought of dyin'
Makes me feel like a young bird flyin',
Cross my mind and layin' on my bed,
Keeps me away from the thought of dyin'
Sob o efeito anestésico dos sons e das palavras deste
hino à liberdade e à vida, e sem a mínima razão aparente, encontramo-nos a rever
a imagem da velha estação de caminho de ferro do Bouro. Relemos mentalmente a
reportagem que a Gazeta nos ofereceu há alguns dias sobre a sua congénere de
São Martinho do Porto, salpicada pela sensibilidade que o C. Cipriano nos consegue
transmitir, cada vez que escreve sobre transporte ferroviário. Voltávamos a ter
de novo uma quinzena de anos e percorríamos despreocupadamente os interiores e os
cuidados jardins da estação da aldeia da nossa infância. O chefe Rodrigues
contava que antes de se instalar definitivamente e durante mais de trinta anos
na bela vila da baía, tinha sido obrigado (não garantimos que o tivesse dito
assim, mas foi isso que lemos e entendemos) a passar alguns anos na pequena e
isolada estação, que servira durante várias gerações a população do Chão da
Parada e as necessidades, em termos de transporte de pessoal e mercadorias da
vizinha quinta do Talvay que se dedicava na altura à cultura intensiva do arroz
de regadio, e recebia imensos trabalhadores sazonais, oriundos maioritariamente
das pobres aldeias das planícies alentejanas. Eram os chamados, bimbos, e
muitos acabavam por casar e constituir família na nossa aldeia.
Instalada em local ermo e isolado, entre pinhais e ricos
terrenos agrícolas, a estação do Bouro, com o seu imponente e amplo armazém construído
em madeira, para alguém que não tivesse ligações afectivas à zona, seria
definitivamente o pior local do Mundo, que um jovem casal poderia escolher para
iniciar a sua vida. No entanto, para todos os que nasceram naquelas paragens e
diariamente se dirigiam para as fazendas dos Arneiros Pequenos, das Pôças, dos
Brejos ou do Rechiéu, para as suas pequenas e dispersas parcelas de terreno que
lhes davam batatas, feijões, milho, e todo o tipo de legumes frescos que respondiam
às necessidades duma família normal da época, numa altura em que a palavra
frigorífico não tinha para os habitantes da nossa aldeia qualquer significado,
seria o oposto, pelo imaginário que oferecia, como cais de partida para mundos
melhores, e pela qualidade de todos os terrenos envolventes.
Hoje, sempre que voltamos ao Chão da Parada, a nossa
companheira, uma dessas tais garotas que por ali apareciam todos os meses de
Agosto, e que adorava subir e descer a grande duna de Salir um dia fixou uma
das motas que era conduzida por um rapaz da aldeia que ela não conhecia, sabe
que a pequena visita ao local onde estava a estação do Bouro, faz parte do
nosso roteiro turístico obrigatório. Quando olhamos para a velha quintinha do
miúdo que partiu para a América, para o pequeno casal que servia de residência
secundária ao senhor Cruz, que cremos, vivia em Lisboa, ou para o local onde em
tempos se transformaram produtos resinosos, e posteriormente funcionou um
pequeno restaurante, e que continua guardado por um cão de aspecto nada
acolhedor, não somos imunes a uma enorme, mas simultaneamente muito agradável
melancolia, acompanhada por uma sensação de bem-estar que apenas os locais dos
quais guardamos boas recordações nos podem dar. A estação do Bouro, é, para
nós, um desses locais.
Quanto
á localização da nossa velha estação, não pode ficar situada na Serra do Bouro,
pois esta não existe como aglomerado populacional. Dá apenas o nome à
freguesia. Dizia-se então na altura, que se não ficava no Chão da Parada,
ficaria localizada no...Bouro.
J.L. Reboleira Alexandre
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